24 de fevereiro de 2020

PORTO SENTIDO

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Do meu cantinho saí, por poucos dias, para recordar alguns traços do Porto, que há muito não visitava.
Talvez poucos saibam que existiram planos reais para a demolição de grande parte da zona histórica desta cidade. Actualmente não existe um ‘novo’ Porto porque nas décadas de 1940 e 1950 Portugal estava a passar por uma grande crise económica e não teve capacidade financeira para essa renovação.
É verdade, se hoje a cidade é considerada Património Mundial, é graças a essa crise.
Mas tem também outras curiosidades…
Ao longo da História o Porto ficou conhecido por ser uma cidade burguesa que premiava a meritocracia e desprezava os privilégios adquiridos pelo nascimento. Um exemplo disso era negar aos nobres e altos membros do clero o direito a aposentarem-se naquela cidade, como faziam em muitas outras. Este direito obrigava os súbditos do rei a ceder a sua casa a altos membros, e era frequente estes exigirem aos seus anfitriões dinheiro, roupas, animais e mantimentos, e exercerem outros excessos. Para escaparem a esta indigência, os habitantes tornavam-se mercadores e marinheiros, viajando para terras distantes e por muito tempo.
E por falar em curiosidades…
Parei em primeiro lugar junto à Estação de S Bento.

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Quem diria, hoje em dia, no centro de toda aquela agitação, que aquele edifício tinha sido um convento de freiras beneditinas?!
Os lindos azulejos representam cenas históricas como o casamento de Filipa de Lencastre com D. João I, a conquista de Ceuta, cenas rurais, procissões…
Esta obra de arte de cerca de 20 mil azulejos, colocados em 1915, faz desta Estação uma das mais bonitas do mundo.

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E não sabem eles da lenda do fantasma…
É verdade. Um fantasma doce e recatado, teimoso em vida e que, segundo a lenda, ainda percorre os corredores da estação de São Bento. E porquê?
Como escrevi, existiu precisamente no local da estação, o extinto convento Beneditino das Freiras de São Bento de Avé Maria, e este convento contava com numerosas religiosas.
Em 1834 sai o decreto de extinção das ordens religiosas em Portugal, façanha de Joaquim de António de Aguiar, mais conhecido por “mata frades”. Esse famoso papel decretava a extinção imediata das ordens masculinas (e confiscação das suas propriedades), a proibição de que novas freiras professassem os seus votos e a extinção dos conventos por morte da última freira que lá residisse nesse ano.
Foram tempos de grandes dificuldades para as ordens religiosas femininas, encapsuladas num tempo que já não lhes pertencia. O convento de São Bento não foi excepção, tendo vendido a maior parte das suas preciosas alfaias de prata em praça pública. O edifício desmoronava-se e as abadessas lá foram morrendo, uma a uma.
A última abadessa, no entanto, morreu “apenas” em Maio de 1892. Mais de 58 anos após a extinção das ordens religiosas em Portugal! E só assim se pôde abrir caminho para a construção da estação de São Bento.
Diz-se que, teimoso mas serenamente, o fantasma da última abadessa do extinto convento ainda hoje percorre os corredores da estação de São Bento, sendo ouvidas as suas rezas nas poucas horas mortas da estação, quando o ruído é menor. Mas apenas para os ouvidos mais atentos… Que o Porto só se desvenda às almas pacientes 









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Voltei depois à Praça Almeida Garrett, que fora outrora um importante ponto de comércio, festas e romarias, para subir à Igreja dos Clérigos.
( E que linda turista encontrei pelo caminho! )
A história desta Igreja está ligada à Irmandade dos Clérigos Pobres, que resultou da fusão de três instituições de beneficência. Estas instituições foram criadas na cidade do Porto durante o século XVII, com a finalidade de auxiliarem clérigos em dificuldades.
O Edifício de estilo barroco foi projectado pelo arquitecto italiano Nicolau Nasoni, que tem várias obras nesta cidade. O arquitecto não pretendia receber qualquer remuneração pela construção, mas queria ser sepultado na igreja quando morresse.
Mais curiosidades…

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O elemento mais conhecido desta obra é, obviamente a Torre dos Clérigos. Este monumento, feito em granito, tem 6 andares, 75 metros de altura e uma escadaria interior com 240 degraus! Cansados, conseguimos, como prémio, admirar uma bonita vista panorâmica da cidade e pensar que, quando foi construída, era o edifício mais alto de Portugal.
Mas há mais… Quem sobe aqueles degraus, desconhece que, bem por baixo dos seus pés, decorre uma importante operação. Não é secreta, mas forense.
Uma equipa de antropologia forense, arqueólogos e outros técnicos, iniciou um trabalho meticulosamente preparado.
Tudo começou com um acaso. No final das obras de restauro da Igreja dos Clérigos em 2014, foi descoberta uma cripta por baixo do soalho de madeira junto do altar-mor.
Era uma cápsula fechada no tempo. Mal os olhos se habituaram à escuridão, verificou-se a existência de vários caixões e respectivos restos mortais. De quem seriam?
Por mim aposto que um deles será o arquitecto italiano Nicolau Nasoni.
Se pediu para ali ser sepultado… Ganhou merecidamente esse direito.

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Perto da Torre dos Clérigos temos o café Porta do Olival, o mais antigo da cidade, datado de 1857.
Quando a muralha Fernandina foi construída, a Porta mais importante da cidade situava-se mesmo ao lado desse café.
Mas poucos falam deste lugar, pois quando se fala em café no Porto, todos nomeiam o Magestic, considerado o sexto café mais bonito do mundo.
É também um café histórico. A sua relevância advém tanto da ambiência cultural que o envolve, nomeadamente a tradição do café tertúlia, onde se encontravam várias personalidades da vida cultural e artística da cidade, como da sua arquitectura de identidade Arte Nova.
Inaugurado em 17 de Dezembro de 1921, com o nome de Elite, o café, situado no n.º 112 da Rua de Santa Catarina, esteve desde logo associado a uma certa frequência das pessoas distintas da época. Um dos que estiveram presente na inauguração foi o piloto aviador Gago Coutinho, acabado de chegar de uma viagem à ilha da Madeira, e que ficou encantado com o esplendor da decoração Arte Nova.
No ano seguinte o nome mudaria para Majestic, sugerindo o chic parisiense, mais de encontro à clientela que pretendia atrair, e tão apreciado na época. Frequentaram o café nomes como Teixeira de Pascoaes, José Régio, António Nobre, o filósofo Leonardo Coimbra, entre outros.
Na biografia de J.K. Rowling refere-se que a escritora passava muito tempo no Café Majestic a trabalhar no primeiro livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal”.

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Fui caminhando, ‘por ruelas e calçadas’, e logo cheguei à zona ribeirinha.
De origem medieval, a Ribeira sempre foi uma zona de muito comércio e de muita vida, devido à proximidade do rio.
Hoje, a Ribeira está cheia de cafés e restaurantes animados, prontos a receber os turistas que passam por esta parte do velho Porto.
Ao reparar nos restaurantes, veio-me à memória a razão pelo qual os habitantes do Porto eram conhecidos como tripeiros. Segundo a tradição, consta que doaram toda a carne à armada que partiu para conquistar Ceuta, em 1415, ficando apenas com as vísceras para comer, o que deu origem a um dos seus pratos mais tradicionais, as “tripas à moda do Porto”.
Mas, deixando a fome para mais tarde – talvez uma francesinha? - a ponte era o meu objectivo.

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Construída como oferenda ao Rei, foi baptizada como Ponte Dom Luis I, em sua honra. Na altura da inauguração, em 1886, o rei não compareceu para dignificar e agradecer a obra-prima. Na verdade, este Rei era conhecido por não “abraçar” o poder real e raramente cumprir os seus deveres reais. Como castigo pela sua conduta, a população local rebaptizou a Ponte, ficando (apenas) Ponte Luís I.
Esta ponte é um símbolo da cidade do Porto. Totalmente construída em ferro, transmite confiança e grandiosidade.
Mas também esta obra esteve prestes a desaparecer da paisagem da cidade…
No início do século XX aconteceu uma das maiores cheias presenciadas na região. Estas cheias foram tão fortes e o rio Douro subiu tanto, que ficou apenas a 80 centímetros do tabuleiro inferior da ponte. Esta situação colocou toda a estrutura em perigo de derrocada. Tendo em conta o cenário catastrófico, foi pensada uma medida de urgência, que envolvia… destruir a ponte com explosivos!
É verdade, os portuenses chegaram mesmo a pensar explodir a Ponte D. Luís!
Mas não. Ela ali permanece, firma e hirta, e o Porto continua a ser a única cidade da Europa com 6 pontes… Bem, a única, a única, não é bem assim, porque a cidade que fica na outra margem do rio, Vila Nova de Gaia, merece o mesmo reconhecimento, ou não?! 









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Pelas escadas do Codeçal fui subindo à parte superior da ponte, uma tarefa difícil, que exige boas pernas e bons pulmões!
Atravessei-a, não sem admirar o belo rio que se estendia aos meus pés, e todo o casario que se estendia nas suas margens. O sol já se preparava para dormir e as cores quentes abraçavam o seu leito. Era lindo.
Desci de teleférico. Outra forma de apreciar a paisagem.
Já nas margens de Vila Nova de Gaia, conseguimos apreciar o tradicional barco Rabelo.
Antes da criação das estradas e dos caminhos-de-ferro, as longínquas quintas do Vinho do Porto eram apenas acessíveis através do Rio. E assim estes belos e característicos barcos, tiveram um papel preponderante na divulgação do delicioso vinho português.
São também considerados uma obra-prima daquele tempo. Foram desenhados para conseguir resistir às correntes rápidas do Rio Douro, conseguiam transportar até 100 barris de Vinho do Porto e uma tripulação de 12 homens.
Crê-se que a última viagem de um Rabelo pelo Rio Douro tenha ocorrido já em 1964.
Hoje em dia, os tradicionais Rabelos continuam a embelezar o Rio Douro, mas agora só na zona ribeirinha, e apenas com fins turísticos.
No lado oposto ao rio, aparecem as caves do Vinho do Porto. São muitas.

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Se antes este vinho era apenas bebido como digestivo e embrulhado como prenda de Natal, hoje em dia é bebido com regularidade e está até na moda.
Felizmente, as novas gerações apreciam cada vez mais o que é nacional, e o Vinho do Porto faz parte desta lista, tendo até já sido criado o Porto Tónico, um cocktail que vem fazer frente ao Gin Tónico.
As caves do vinho do Porto estão cada vez melhores e mais requintadas, com novos bares, restaurantes, salas de prova e visitas guiadas, onde se explica todo o processo de produção deste vinho.
Os provadores do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto são submetidos a regras rígidas para o processo de certificação de vinhos da região demarcada do Douro.
Uma das maiores curiosidades é que estes provadores não podem usar shampoos com cheiro intenso, nem podem usar perfume, para não contaminarem as provas de vinho.
O Vinho do Porto é diferente porque a fermentação não é completa, sendo parada no início e adicionada depois uma aguardente vínica. Por isso é que o Vinho do Porto é naturalmente doce e mais forte do que os vinhos tradicionais.
A cave que visitei foi a Caves Burmester, empresa que chegou ao Porto em 1834.

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       Também digna de visita, e ainda na mesma linha, está a Casa Portuguesa dos Pasteis de Bacalhau.
Muito digna mesmo.
Ao som da música singular de um Órgão de Tubos do Séc. XIX, entramos num espaço amplo, uma espécie de galpão, rodeado de um grande acervo de livros antigos, duas elegantes escadarias, varandins e um impressionante lustre lá no alto. Sentimos a estranha sensação que entrámos numa gigantesca biblioteca que, por algum truque de magia, se transformou num salão de baile de alguma corte do séc. XVI.
Mas não. Trata-se apenas de criar o ambiente perfeito e requintado, para degustar um bom pastel de bacalhau com recheio de queijo e uma taça de vinho do Porto.
Pena o exagero dos preços. Se bem me lembro, 5€ pelo pastel e 15€ pelo vinho!

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Desta feita, atravessei a ponte pelo tabuleiro inferior, e subi pelo funicular dos Guindais, que conecta a Ribeira ao bairro da Batalha, junto à muralha Fernandina.
É outro ângulo sobre a Ponte Luís I, e uma ligação entre duas zonas monumentais da Invicta, uma viagem agradável que abrevia um íngreme percurso de 412 metros.
Escurecia já quando cheguei à Sé, também conhecida como a Catedral do Porto, um dos monumentos mais antigos de Portugal.

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Com uma lindíssima rosácea e uma galilé lateral de 1736 do famoso Nicolau Nasoni responsável pelos Clérigos.
O seu interior é austero lembrando uma igreja fortaleza. Possui um bonito altar em talha dourada do século XVIII e numa capela lateral o famoso “altar de prata” que foi escondido do saque napoleónico durante as invasões francesas, através de uma parede falsa.
O lindíssimo claustro gótico possui fantásticos painéis de azulejos, assim como belos espaços adjacentes
E o que dizer do pelourinho? Que faz este ano… 75 anos! 
À primeira vista, quer pelo estilo rococó, quer pela envolvente secular Sé Catedral, este belo pelourinho parece revestir-se de uma respeitosa antiguidade. Mas, na verdade foi edificado na sequência da demolição dos edifícios envolventes à Sé.
O pelourinho que hoje vemos é uma reconstituição de uma gravura de 1797 e foi inaugurado em 1945.

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As chamadas escadas da rainha, que eram subidas por D. Teresa para ir de sua casa à Sé, ainda lá estão. E, umas casas abaixo da Sé, foi onde Camilo Castelo Branco viveu e frequentemente ia para cima dos telhados cantar canções às moças vizinhas.
E por aqui terminou este meu dia no Porto.
Houve mais, sim, mas o que vale a minha narrativa entre tantas?
É verdade, como escreveu Nuno Júdice, Shakespeare podia ter vivido aqui.
Tantos monumentos, tantas lendas…
Ali viveu o Zé do Telhado, que conheceu Camilo Castelo Branco na Cadeia da Relação, Pedro Cem, rico comerciante que perdeu 100 navios numa tempestade e que se tornou Pedro Sem. Há também o mistério do Tesouro da Serra do Pilar, a do barão Forrester e do seu naufrágio…
Mas, como disse Saramago, 
"O fim de uma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."

…Talvez noutro dia.

2 de fevereiro de 2020

DE FRIDA PARA DIEGO

Desta feita a minha participação nesta colectânea é inspirada em Frida Kahlo.
Esta pintora mexicana teve uma vida complicada, tanto a nível físico como sentimental. 
No entanto, foi um acidente que lhe destruiu o corpo todo, que a despertou para a pintura. 
Hoje é considerada um ícone da cultura popular do México e até do feminismo.

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"De Frida para Diego

Arranco mais uma folha, deste meu diário,
e escrevo para ti.
Ou devia pintar uma tela? …Ou mesmo um mural?
Sim, se o amor fosse uma arte, para ti seria um mural.
Mas não posso sair desta clausura...
A Casa Azul é o meu mundo, o meu abrigo, a minha tela e a minha cela.
Tela mexicana que preencho de cor, a única cor que a minha existência permite.
Sabes que não pinto sonhos, nem pesadelos.
Pinto espartilhos, prisões, sobrancelhas grossas, expressões, corpos que flutuam na banheira...
Quem me chama de Surrealista não conhece a minha realidade…
Dores, desmanchos, desilusões. E mais dores, e desmanchos, e desilusões...
Ressentimento.
Trajo vestidos de veludo que não amaciam a minha vida.
Tecido ilusório, hipócrita, dissimulado.
Não caminho, não sinto o chão,
…‘mas para que preciso de pés, se tenho asas para voar’...?
Gostava de acreditar...
Mas não.
Sento-me à mesa com monstros e esqueletos.
Carrego espinhos ao pescoço e borboletas no penteado...
A marimba toca como se alegrasse o meu leito. Sonho.
Mas acordo e o meu corpo carrega em si todas as feridas, todas as chagas do mundo.
Acidentes que nos partem, o corpo e a alma.
Sem esperança.
Dizem que transformo em arte um corpo quebrado...
Paris acolheu a minha imagem, o meu rosto sem sorriso, as minhas flores.
Se pinto a mim mesma é porque sou sozinha.
Porque me deixas só. Porque pintas tantas outras...
No entanto, guardei para ti o mural da minha vida.
Nem Picasso, nem Kandinsky.
Apenas para ti.
Pois só tu adias o momento da partida.
Sentirias a minha falta?
A minha vaidade acredita que sim...
Mas, tanto vives em cubos, com a simplicidade de quem vive com indígenas,
como pensas, arrogante, que podes controlar o Universo!
Como ousas cantar Neruda e dizer que Deus não existe?...
Talvez.
Para mim certamente que não.
Perdi tanto.
Agora, espero alegre a minha partida e não quero voltar nunca mais…"